segunda-feira, 29 de abril de 2013

REFLEXÕES DE ADÃO



Tenho saudades da Inocência ...Hoje fui até lá, não sei bem o por quê. Não disse nada a Eva. Já fazia tanto tempo que não ia... No princípio passávamos por lá muitas vezes, mas a luz da espada flamejante nos mantinha distantes e ela chorava. Depois paramos de ir. Não fazia mais sentido.

Mas hoje fui lá... Está tão mudado... O mato cresceu tanto que há uma verdadeira floresta onde antes havia só um belo jardim. Logo estará perdido. Bem, acho que para nós esta perdido há muito tempo... Creio que queria recordar. Lembrar a liberdade, a paz, a inocência, a comunhão.

Tudo parece hoje tão distante que nem me lembro mais como era. Depois que Abel morreu, ficou ainda mais difícil. O erro de tudo aquilo parecia pesar ainda sobre nossas cabeças, como se a culpa no fundo fosse nossa. Não sei se é isso que os pais devem sentir ao ver os erros dos filhos, mas é o que sentimos.

Então Caim foi embora. Agora raramente ouvimos falar dele. É verdade que outro dia um filho de seu filho passou por aqui. Estranho, é homem crescido. Estou ficando velho e cansado e nem sabia.

Tenho saudade! Saudade da força, da vitalidade que tinha com Deus no jardim. Ele nos perdoou mas as consequências são terríveis e mesmo o perdão não as pode apagar. Os sacrifícios aliviam, a esperança traz algum consolo, mas a comunhão nunca mais será a mesma e meu coração parece não ter parado de murchar desde aquele dia fatídico. Maldito dia, terrivel dia. Tanto engano e mentira!

A serpente ainda vai aparecendo de vez em quando. Já não fala, mas o veneno está lá. Tenho matado algumas, mas parecem renascer com facilidade e sua malícia não diminuiu nada com o tempo. Como fomos enganados!

"Conhecereis a verdade", disse ela. Sim, mas não explicou como iríamos lidar com ela. "Sabereis a diferença entre o bem e o mal", sim, mas quem disse que teríamos a força para escolher o certo? Sereis como Deus! Ah! Como se isso fosse possível ...como se isso fosse desejável.

Quanto mais o tempo passa, mais parece grande a tolice daquele dia, mais parece incrível que tenhamos caído tão facilmente. Mas, a verdade é que caímos. E o peso dessa escolha vai manchar meu nome por toda a eternidade. Multidões de gerações me amaldiçoarão ao saber como fui enganado. Ninguém estava tão habilitado a resistir... e é isso o que mais me dói. Ter caído sem necessidade. Ter caído podendo ter ficado de pé.

Tenho saudades da inocência, do riso alegre e sem malícia que enchia o rosto de minha mulher, dos sonhos tão doces à noite, do trabalho tão recompensador, da natureza tão amiga. Saudades da sensação de pureza e santidade que me enchia cada vez que o Criador vinha nos visitar.

Aqueles momentos eram tão plenos. Sua presença era a razão de toda a existência, o motivo da vida, a causa de nos sentirmos desfalecer com sua ausência. Não se pode mesmo viver sem a Sua presença. Simplesmente tudo deixa de fazer sentido.

Tenho saudades da Inocência.. Hoje fui até lá. Não sei bem o por quê.
Não disse nada a Eva. Já fazia tanto tempo que não ia...
No princípio passávamos por lá muitas vezes, mas a luz da espada flamejante nos mantinha distantes e ela chorava. Depois paramos de ir. Não fazia mais sentido.

A chama se apagou e não encontro maneira de acendê-la novamente. O céu parece sempre escuro e fechado. Não creio que o Criador tenha deixado de nos amar. Posso ver seu cuidado de muitas formas. No entanto, a relação não pode ser a mesma. Quebrei sua confiança, que fora total. Falhei no único ponto em que Ele me pôs à prova. Dei um voto de desconfiança em sua provisão, logo naquilo em que sua prodigalidade fora tão evidente.

Sinto saudade da harmonia, da paz.! Agora parece que não passa um dia sem que eu discuta com Eva ou um de meus filhos ou netos. É que com o conhecimento do bem e do mal nos veio uma incrível, incontrolável e permanente vontade de julgar os outros. Julgar o que fazem e o que não fazem. Dizer se é bom ou mal. Mas nossos julgamentos falham justamente por falta de conhecimento. Sim, nosso conhecimento é tão limitado! Conhecemos pouco dos outros, de suas razões e motivos. Conhecemos pouco de nós mesmos, de nossas verdadeiras razões e motivos para julgar. Conhecemos pouco sobre o próprio ato de julgar e por isso os julgamentos falhos nos levam a tantos conflitos e injustiças.

Sinto saudade da liberdade! E é tão estranho. Lá no jardim havia limites que Deus colocara. Mas eu me sentia tão seguro, tão confortável, tão protegido! Foi só quando saimos dos limites e aparentemente podíamos fazer o que desejássemos com nossas vidas é que notei que a liberdade se fora. Compramos uma ilusão, um engano e pensávamos que estávamos nos libertando, quando na verdade estávamos entrando direto numa escravidão que parece não ter saída.

Como sinto saudade do sono bem dormido do jardim! Da sensação de plenitude e satisfação. Esta vida que ganhamos não consegue trazer isso. Durmo sempre preocupado com o dia de amanhã. Sob o peso das necessidades da família. A responsabilidade de ser o que todos esperam que eu seja: O líder, o chefe, aquele que sabe. E no entanto, acho que todos já perceberam que, por trás de meus olhos murchos e barba branca, eu sei tanto quanto eles. Que estou tão perdido quanto eles. Tão arrependido e só quanto qualquer outro. Insatisfeito e cansado...

No jardim não sentíamos dor e não sabíamos o que era solidão. A presença do Criador era tão completa e constante que enchia o dia e a noite como um doce perfume que sentimos sempre no ar, mesmo sem saber de onde vem. Mas o perfume se foi... Descobrimos que é possível alguem sentir-se só. É possível se ter medo. É possivel morrer!

Coisa estranha a morte. Não deveria trazer tanto medo, mas chego à conclusão que ela é tão terrível porque é contrária à nossa natureza. Fomos criados pela Fonte da Vida para termos vida. A morte é tudo que a vida não é. Fria, vazia, sem razão, quebrando a continuidade, separando, rasgando, silenciando de uma vez. Sei que vou morrer! Não sei quando nem como, mas isso talvez não seja tão importante quanto saber para quê. Sim, para que morrer? Por que motivo? Para onde? E é isso que mais me assusta.

Sinto saudade da inocência, da justificação! De poder estar em pé diante de Deus sem vergonha ou receio. De sentir-me digno, puro, perfeito. Resta hoje só o sonho, a esperança. O eco daquelas palavras: “esmagará a cabeça da serpente“. E é esse sonho distante, que nem entendo bem, que me faz caminhar e olhar adiante com alguma expectativa. Cada criança que nasce me traz a pergunta: Será este? Cada dia que passa me traz a certeza: estamos mais perto dele. E pelo dia da redenção anseio, por ele vivo, creio que por ele morrerei. Nesse dia viverei novamente e então, só então, deixarei de sentir saudades do Paraíso.

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